domingo, 18 de janeiro de 2015

#32 - CANTIGA SUA À DITA SENHORA, Nuno Pereira

O cuidado mui sentido
donde morte se m'ordena
é qu'haveis de ter marido
& eu sempre minha pena.

     E naquisto contemplando
vai crescendo o desconforto,
que desmaio em cuidando
& caio mil vezes morto.
E fora de meu sentido
com tal morte qual s'ordena
para mim ver o marido,
sem vós verdes minha pena.

sábado, 10 de janeiro de 2015

#31 - MULTIDÃO, Ada Negri

Uma folha tomba no plátano, um frémito sacode o imo do cipreste,
És tu que me chamas.

Olhos invisíveis sulcam a sombra, penetram-me como à parede os pregos,
És tu que me fitas.

Mãos invisíveis nos ombros me tocam, para as águas dormentes do lago me 
                                                                                                [atraem,
És tu que me queres.

De sob as vértebras com pálidos toques ligeiros a loucura sai para o cérebro,
És tu que me penetras.

Não mais os pés pousam na terra, não mais pesa o corpo nos ares, transporta
                                                                                 [-o a vertigem obscura,
És tu que me atravessas, tu.


(versão de Jorge de Sena)

segunda-feira, 5 de janeiro de 2015

#30 - A MENINA FEIA, Armindo Rodrigues

A menina feia
Sentava-se à janela,
Mas quem vai na rua
Nem repara nela.

À noite no quarto
Despe-se a menina
Para se deitar.
Tem os seios duros
E a barriga lisa.
Mal tira a camisa
Logo o quarto fica
Cheio de luar.

E a menina feia,
Mas de corpo lindo,
Sonha que está nua
Sentada à janela,
E no meio da rua,
Com os olhos luzindo,
Os homens se matam
Por um riso dela.

domingo, 4 de janeiro de 2015

#29 - POEMA DO SEMEADOR, Péricles Eugênio da Silva Ramos

Áspera é a terra, o esforço não tem prémio,
porém, à sombra do pomar -- rubro pomar! -- dos pêssegos do sol
em ti eu vejo, ó torso
de haste, o lírio nunca ausente.

Nenhuma flor, é certo, aponta em meu caminho,
mas desde que teus seios desabrocham na aridez,
em pensamento ressuscito a graça de uma vide
ou faço resplender, à luz do ocaso,
o rosto em fogo das romãs.

Áspera é a terra:
porém quando te despes, calmo trevo,
contaminados pelo aroma de jasmins sem consistência
ergue-se no ar
um canto nupcial de pólens tontos;
e ao embalo dos astros renascendo,
eu semeador,
confiante no futuro,
lavro meu campo ensagüentado de papoulas
com touros cor de mar ou potros como luas.