segunda-feira, 22 de janeiro de 2018

#71 - POEMETO IRÔNICO, Manuel Bandeira


O que tu chamas tua paixão,
É tão-somente curiosidade.
E os teus desejos ferventes vão
Batendo as asas na irrealidade...

Curiosidade sentimental
Do seu aroma, da sua pele.
Sonhas um ventre de alvura tal,
Que escuro o linho fique ao pé dele.

Dentre os perfumes sutis que vêm
Das suas charpas, dos seus vestidos,
Isolar tentas o odor que tem
A trama rara dos seus tecidos.

Encanto a encanto, toda a prevês.
Afagos longos, carinhos sábios,
Carícias lentas, de uma maciez
Que se diriam feitas por lábios...

Tu te perguntas, curioso, quais
Serão seus gestos, balbuciamento,
Quando descerdes na espirais
Deslumbradoras do esquecimento...

E acima disso, buscas saber
Os seus instintos, suas tendências...
Espiar-lhe na alma por conhecer
O que há de sincero nas aparências.

E os teus desejos ferventes vão
Batendo as asas na irrealidade...
O que tu chamas tua paixão,
É tão-somente curiosidade.

sexta-feira, 19 de janeiro de 2018

#70 - "Ao passar junto da vide", Al-Mu'tamid

Ao passar junto da vide
Ela arrebatou-me o manto,
E logo lhe perguntei:
Porque me detestas tanto?
Ao que ela me respondeu:
Porque é que passas, ó rei,
Sem me dares saudação,
Não basta beberes-me o sangue
Que te aquece o coração?

quinta-feira, 4 de janeiro de 2018

#69 - EVOCAÇÃO DE SILVES, Al-Mu'tamid

Saúda, por mim, Abu Bakr,
Os queridos lugares de Silves
E diz-me se deles a saudade
É tão grande quanto a minha.
Saúda o palácio dos Balcões
Da parte de quem nunca os esqueceu.
Morada de leões e de gazelas
Salas e sombras onde eu
Doce refúgio encontrava
Entre ancas opulentas
E tão estreitas cinturas!
Mulheres níveas e morenas
Atravessavam-me a alma
Como brancas espadas
E lanças escuras
Ai quantas noites fiquei,
Lá no remanso do rio,
Nos jogos do amor
Com a da pulseira curva
Igual aos meandros da água
Enquanto o tempo passava...
E me servia de vinho:
O vinho do seu olhar
Às vezes o do seu copo
E outras vezes o da boca.
Tangia cordas de alaúde
E eis que eu estremecia
Como se estivesse ouvindo
Tendões de colos cortados.
Mas retirava o seu manto
Grácil detalhe mostrando:
Era o ramo de salgueiro
Que abria o seu botão
Para ostentar a flor.


(versão de Adalberto Alves)